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Beijo Ruim e Caipirinha com Melaço - Melchiorre

Ele veio como quem abre a porta do mausoléu dos dates ruins.
O estreante, com nome bonito — daqueles que a gente lê num livro e sublinha pra batizar um filho futuro.
O tipo de cara que se recusa a revelar o signo antes do terceiro encontro, como se o mapa astral dele fosse um segredo de Estado.

Eu não fazia ideia, mas aquele primeiro gole caipirinha ia me levar por uma maratona de encontros errados.
E tudo começou com Melchiorre.

Era sábado. Duas da tarde.
Tinha acabado de sair do banho e minha alma tava tão limpa quanto meu histórico de relacionamentos sérios: zerado.
Ainda enrolada na toalha — uma na cabeça, outra no corpo —, estava prestes a começar meu ritual de transformação. Esmalte, perfume, playlist de confiança.

Foi aí que o celular vibrou em cima da penteadeira.
Uma. Duas vezes.

“Melchiorre mandou 2 mensagens.”

Franzi o cenho. Melchiorre?
Ah, o italiano fake com nome de personagem de novela de época. Aquele que eu tinha conhecido num app, mas que nunca saiu do status de seguidor silencioso.
Engenheiro, professor, educador físico e escritor — sim, tudo junto, no mesmo corpo. Quase um combo acadêmico-esportivo que parecia ter saído direto de um TED Talk.

E mesmo fugindo totalmente do tipo de homem que geralmente me faz perder o juízo... eu cliquei. Porque vamos ser honestas: curiosidade é um tipo de tesão.

As mensagens estavam lá, bem no estilo “confiante com toques de charme calculado”:

“Pois bem, tô querendo ver esse filme aqui.”
Sessão às 21h20.

A gente pode tomar uns drinks (ou cervejas, dependendo da vibe que você quer passar hahahaha) no Tom Bar, lá pelas 19h30. É do lado do cinema. Depois a gente assiste ao filme.

O que me diz?

Sentei na frente da penteadeira e encarei o espelho.
Ainda de toalha. Ainda indecisa.

Um cara com quatro profissões, que não quer revelar o signo antes do terceiro encontro, e já tá me propondo um roteiro completo de date com timing digno de Google Maps?
Claramente, ou ele ia me seduzir… ou me traumatizar.

Abri o perfil dele de novo, só pra garantir que eu não tava prestes a sair com um serial killer — ou pior, um fã de coach de produtividade.

E lá estava ele. Numa das fotos, segurando um copo que parecia mais uma pirâmide invertida do Louvre do que um utensílio de bar. Soltei uma risada.
Ridículo. Estranho. Intrigante.

Respondi sem drama:
Te vejo lá.

A tarde passou rápido, como sempre passa quando você tem um encontro marcado com um homem misterioso e um histórico emocional que faria um terapeuta chorar.

Quando chegou a hora, fui me aprontar. Tomei outro banho — um banho prêmio. Não que eu estivesse com más intenções… mas vai que, né?
Finalizei o cabelo com aquele cuidado que beira o exagero, fiz o truque do perfume nos pontos estratégicos — clavícula, pulso, aquele cantinho atrás da orelha que grita “beije aqui sem pensar duas vezes”.

Me maquiei com precisão cirúrgica e fui direto no combo mais poderoso já criado por uma mulher indecisa: o vestido preto tubinho.
Eu sabia que o bar era alternativo. Um desses lugares que servem drinks com nomes em francês e garçons que te analisam dos pés à alma.
Mas se eu ia conhecer um homem com quatro profissões e um copo esquisito, que ao menos minha primeira impressão fosse a de alguém com autocontrole e um ótimo caimento.

Joguei uma jaqueta por cima, porque o vestido sozinho gritava CEO da sedução. E eu só queria parecer interessante, não pronta pra um after.

Passei o gloss. Me olhei no espelho. Respirei fundo.

E fui.

(Ah, e sim, odiei que ele não foi me buscar. Mas o que eu podia esperar? O homem era um desvio completo do meu tipo — e aparentemente isso também incluía “não buscar em casa”. Romantismo? Não. Curiosidade? Cem por cento.)

O bar era ok. Nada que merecesse um post no Instagram, nem um comentário no grupo das amigas. Mas, sei lá, uma nota 6,5. E olha… depois de tanto tempo em dieta emocional, até um 6,5 parecia gourmet.

Ele estava me esperando encostado num poste. Sim, num poste. Como se fosse uma figurante da própria vida.

E o look?
Camisa de time.
Bermuda de academia.
Tênis de corrida.
E um colar de miçangas verde e branco, porque aparentemente o dress code era “pós-treino com toques de sofrimento estético.”

Eu, com meu vestido tubinho preto, me senti traída. E levemente overdressed.
Quer dizer… não custava nada ele ter fingido que o encontro importava.

Ele acenou como se estivesse me chamando pra uma pelada no sábado de manhã.
Torci o nariz, ajeitei o vestido e tentei dar um sorriso simpático — um daqueles que enganam bem de longe e escondem o grito interno.

Ele chegou perto e me abraçou. Assim. Sem cerimônia. Sem aviso.
O cheiro era uma mistura estranha de perfume barato e banho feito às pressas. Ou talvez só desodorante em desespero. Me afastei rápido e soltei um “oi” que soou mais como um pedido de socorro abafado por gloss.

Na real? Eu já queria ir embora.

Mas, fazer o quê? Fugir no primeiro minuto era dramático até pra mim.
Então deixei que ele segurasse minha mão — uma posse sem permissão — e me puxasse até o bar.

A única mesa disponível era ao lado da caixa de som. Perfeito.
Agora eu teria que gritar frases básicas como “o que você faz da vida?” e “você acredita em signos?” com um grave no ouvido e a sensação de que o universo estava me trolando.

Melchiorre não era exatamente feio.
Era… ok. Mediano. Como o bar.
Talvez um pouco mais baixo do que eu esperava, mas com uma barba que parecia ter sido feita com intenção. Um sorriso bonito. Um cabelo cheio. Um potencial que, com boa vontade e três gin tônicas, talvez até flertasse com o carisma.

Mas ali, do outro lado da mesa, ele parecia mais o início de um caos do que de um romance.

O garçom se aproximou e perguntou o que iríamos beber.

Silêncio. Melchiorre parecia mais interessado em contemplar o cardápio de parede do que participar da decisão.

Então tomei a frente e pedi uma caipirinha — segura, confiável, perfeita pra entorpecer encontros medianos.

Mas, claro, ele me interrompeu.
— Duas caipirinhas. Com melaço. — disse, sem nem olhar pra mim.

Ah, o clássico macho-alfa com paladar de food truck gourmet.

Sorri. Porque o instinto de sobrevivência feminina sempre manda sorrir. Mesmo quando a vontade é pedir um shot e uma saída de emergência.

Ele se recostou, me avaliando como se estivesse julgando um vinho.
— Aqui estamos. Você é bem bonita mesmo. Me conta… como foi que saiu com um cara como eu?

Se a bebida tivesse chegado, eu teria engolido metade do copo. Mas como ainda não, só mantive o sorriso e desejei estar em casa, de moletom, assistindo reality show com o juízo intacto.

— Ah, que isso… — murmurei, oferecendo um sorriso que queria correr, escalar paredes e fugir por qualquer saída possível.

As bebidas chegaram. Melaço incluso. E, como previsto, a música do bar decidiu aumentar. O universo realmente queria dificultar a comunicação — como se ela já não estivesse impossível desde a troca de mensagens.

— Não acredito que você não conhecia aqui — ele começou. — Esses dias fiquei completamente bêbado no bar da frente. Era lá que eu queria te levar. Eles têm uma caipirinha de jambu maravilhosa. Meio que adormece a língua quando você bebe. Jambu é anestésico.

A língua adormece. Ótimo. Assim ela não precisa responder nada.

— Sério? Nunca experimentei. Deve ser bom — respondi, me esforçando pra soar minimamente interessada. Eu ainda queria dar uma chance. Bem pequena. Tipo, do tamanho da paciência que eu tinha pra homem que explica o que é jambu como se eu tivesse vindo de outro planeta.

E aí… ele começou a falar.
E não parou.

Era como assistir a uma série que você não escolheu, no idioma errado e sem legenda.

Detalhe: eu tinha mencionado — claramente — que não gostava de falar sozinha. Mas ele entendeu que eu não gostava de falar. Ponto. E decidiu assumir o show de stand-up completo.

Foram histórias, teorias, comentários sobre o universo, sobre ele mesmo, sobre o futebol da infância e, em algum momento, sobre o primo dele que faz um churrasco muito bom.

Até que eu não aguentei.

— O que você fazia naquele app de relacionamento? — cortei, aproveitando uma micro pausa entre a teoria da conspiração sobre sucos detox e a lembrança de uma ressaca em Arraial do Cabo.

— Bom… no app eu tava mais por diversão, sabe? — ele começou, com aquele tom de quem acha que tudo que fala devia virar citação no LinkedIn. — Mas também com aquela expectativa de conhecer gente nova. Quem sabe acabar numa noite como essa.

E então, como se fosse o auge do romantismo moderno, ele estendeu a mão por cima da mesa e encostou na minha.

Zero arrepio.
Zero química.
Zero vontade de manter esse contato físico além de um aperto de mão corporativo.

Na real? Meu semblante devia estar no modo “tela azul”, porque nem tentei disfarçar. E ele… claro, não percebeu nada.

— E você? — devolveu, finalmente me dando espaço pra emitir sons além de "aham" e "sério?".

— Acho que… conhecer gente interessante. Legal. Alguém que tope mais de dois encontros sem me dar vontade de me autoexilar. — Dei de ombros com charme ensaiado, e mandei a cartada zodiacal, aquela que separa os homens dos mitos. — Mas me conta… qual teu signo? Pergunta importantíssima.

Ele inclinou levemente a cabeça, como se tivesse acabado de ouvir que eu acreditava em fadas ou homeopatia.

— Mais encontros? Como assim?

Ah. Pronto. Ele mordeu a isca.

— É que, geralmente, os caras viram idiotas já no segundo. Então, na prática, não existem "próximos encontros". Tipo pokémons que se autoextinguem depois do segundo date.

Ele riu. Riu como quem acha que é mais esperto do que é.

— Bom… só vou te contar meu signo depois que eu for canalha no próximo encontro. — Ele se inclinou, se aproximando como se estivesse prestes a protagonizar uma cena de filme… só que sem trilha sonora e com muito constrangimento. — Afinal, parece que esse é o seu tipo.

WTF.

WTF em dobro com juros compostos.

Eu juro que por um segundo achei que ele ia me beijar ali mesmo, em pleno bar, cercado de gente bêbada e caipirinhas com melaço. Como se estivesse arrasando no flerte. Como se eu estivesse interessada.

Eu sorri. Aqueles sorrisos que precedem um surto ou uma fuga.

— Preciso ir ao banheiro. — falei, me esquivando com a mesma destreza de quem desvia de uma propaganda de perfume masculino barato.

E fui. Reta. Elegante. Com dignidade e pressa.

O banheiro do bar era tudo o que se espera de um banheiro de bar às nove da noite: espelho manchado, pia com uma torneira que cuspia água numa pressão de mangueira de incêndio, e um leve cheiro de desinfetante tentando vencer o suor do povo.

Me encostei na pia, olhei meu reflexo e pensei:
“É isso. Estou aqui, vestida como se fosse jantar com o James Bond e sendo cortejada por um homem que acha que usar camisa de time em date é moda conceitual.”

Soltei um suspiro digno de trilha sonora.

Passei o dedo de leve no gloss, que milagrosamente ainda resistia como minha paciência. Pensei se não era melhor fingir uma dor de cabeça súbita, ou inventar que meu cachorro — que eu nem tenho — engoliu um Lego e precisava ir pra emergência.

Mas eu... sou teimosa.
E curiosa.
E parte de mim queria ver até onde aquele caos poderia ir. Se era um date ruim nível “vou bloquear e apagar do histórico” ou “pelo menos isso vai render uma boa crônica”.

Voltei pra mesa.

Ele estava no celular, provavelmente lendo sobre “efeitos afrodisíacos do jambu” ou postando um story com legenda tipo #DeusNoComando.

Quando me viu, sorriu. Aquela confiança de quem acha que está mandando bem.

— Pensei que você tinha fugido. — brincou.

Você não faz ideia do quanto eu considerei.

— Tô aqui. — respondi, sentando com classe, cruzando as pernas como quem diz: “me segura, universo”.

— Pedi mais duas caipirinhas. Dessa vez de maracujá. Porque, né… clima de romance.

Ele piscou.
Ele piscou.
Como se tivesse lançado a melhor cantada da noite.

— Maracujá é calmante, né? — comentei, fingindo leveza. — Vai que acalma meu instinto de correr daqui.

Ele riu.
Achou que era brincadeira.
E não,não era.

Nos próximos minutos — e quando eu digo minutos, quero dizer uma eternidade disfarçada de conversa — ele descobriu que eu era escritora. A faísca que eu esperei ver nos olhos dele nunca aconteceu.
Em vez disso, puxou o celular como quem revela um troféu e começou a me mostrar uma sequência interminável de artigos que havia escrito… sobre futebol. Do time dele. Em ordem cronológica. Com comentários dele mesmo elogiando seus próprios textos. Um verdadeiro fã — de si próprio.

— E esse aqui? Olha só essa análise do jogo contra o Palmeiras. Um golaço de crítica esportiva.

Sorri. Polida. Diplomática. Fingindo que aquilo era mais interessante que papel de parede descascando.

Ele então perguntou sobre o meu blog. Aquele, o meu pequeno santuário de crônicas, palavras sensíveis, reflexões que arrancam suspiros.

Mostrei.
Ele olhou.
Por dois segundos.

Bloqueou a tela do celular com a frieza de um juiz anulando um gol e mudou completamente de assunto. Começou a falar de encontros casuais bizarros, quantas horas durava com uma mulher, quantas vezes era “o normal”, como se eu tivesse pedido o currículo sexual dele ou me importasse remotamente.

Eu?
Ali, na cadeira dura, vestida como se estivesse num primeiro encontro com o amor da vida, ouvindo um homem me contar suas proezas horizontais com a delicadeza de um martelo.

Nem todas as caipirinhas do mundo — nem com jambu, nem com melaço, nem com vodka importada — fariam aquele homem parecer ok.

Vi ele levantar a mão, pedir mais uma rodada. Quando o garçom voltou, ele estava animado como se o date estivesse indo incrivelmente bem. Eu já havia desistido. Fui de “talvez ele só seja tímido” para “meu Deus, será que eu assinei um pacto com alguma entidade?”

E então, no meio de uma frase qualquer, entre um “caramba” ou um “é mesmo”, ele me beijou.

Sem clima.
Sem aviso.
Sem vontade.

Foi o beijo mais aleatório da história dos encontros modernos.
E sabe o que é pior?
Eu retribuí.

Não porque queria.
Mas porque minha capacidade de julgamento estava amaciada por álcool e pela esperança patética de que talvez, talvez, aquele beijo fosse salvar a noite. Spoiler: não salvou.

Não era ruim, mas estava a quilômetros de ser bom. Foi tipo morder uma fruta bonita por fora e descobrir que tá passada por dentro. E eu já sabia: aquele seria o primeiro e último beijo. Memorável pelo erro, não pelo sabor.

Ele se afastou de repente, provavelmente achando que tinha encerrado a noite com chave de ouro. Sorriu.

— Acho que podemos pedir a conta.

Bingo.
A coisa mais sensata que ele disse a noite inteira.
Finalmente.

O garçom se aproximou com a conta como quem anuncia a sentença final de um crime passional. Ele parou ao lado da mesa, sorrindo com aquele ar neutro de quem já viu de tudo — inclusive términos em tempo real, pedidos de casamento bêbados e gente chorando por mensagem não respondida.

E lá estava eu. Cansada, meio tonta da bebida, completamente sóbria do encanto. Esperando que o mínimo fosse feito: o cara, um adulto funcional (em tese), pagasse a porra da conta.

Mas claro que não. Porque Melchiorre era o tipo de homem que não decepciona em decepcionar.

— Divide por dois. E passa primeiro no meu, porque se não passar… ela paga tudo. — disse, com a cara mais lavada do hemisfério sul.

Se minha alma pudesse sair do corpo pra bater palma com sarcasmo, ela teria feito um show.

Eu pisquei. Respirei. Recalculei o caminho da minha sanidade e falei com uma calma que só a raiva elegante conhece:

— Pode passar tudo no débito, por favor.

Dei um sorrisinho que era puro deboche embebido em Chanel nº 5 e caminhei até o garçom como se estivesse indo receber um prêmio, não livrar minha própria pele de um embuste.

— Fica aqui enquanto eu chamo um Uber. Antes que eu jogue esse copo na cara dele e saia no Extra como "mulher perde a linha em bar de baixa iluminação" — sussurrei ao garçom, que agora parecia meu anjo da guarda de avental e com um crush implícito no olhar.

— Ele mandou mal? — ele perguntou com uma sobrancelha arqueada e um sorriso contido, como quem já sabia a resposta, mas precisava confirmar o grau do desastre.

— Péssimo. — Eu disse, lançando um último olhar para Melchiorre, que estava sentado, mergulhado no próprio celular, como se o date todo não tivesse acontecido.

E ali, naquele instante congelado, percebi que não havia mais nada a dizer. Nem tchau. Nem adeus. Nem “me avisa quando chegar em casa”.

Meu Uber estacionou com um farol aceso e um juízo que eu gostaria de ter tido antes de sair de casa.

Levantei. Saí. Não olhei pra trás.

Mas, como o universo adora dar o golpe final no nosso psicológico, ouvi a voz dele ecoando pela rua, como se estivesse num palco de stand-up de quinta categoria.

— Eu ia te convidar pra ir na minha casa! Tô me mudando… mas a gente divide a cama com as caixas!

Sim, você leu certo. Com. As. Caixas.

Eu parei por meio segundo. Pisquei com a intensidade de quem está tentando entender se foi isso mesmo que ouvi ou se era o álcool distorcendo a realidade.

Bufei. Entrei no carro com a dignidade remendada e uma nota mental que dizia:

Babaca número 12. Mas com potencial pra top 3.

Encostei a cabeça no banco, olhei pela janela e deixei o brilho dos postes me lembrar que nem todo fim é ruim.

Alguns são o plot twist perfeito pra um capítulo escandalosamente bom.

E aquele? Aquele era só o primeiro.

Porque, minha amiga, tudo — absolutamente tudo — começou com Melchiorre.

E a maratona de dates errados mal tinha esquentado os motores.