Pular para o conteúdo principal

Cartas para Vica - 70 por cento, adeus por Augusto Castillo

 Leia ouvindo : State Lines


Ludovica,

Essa é a quinta carta que te escrevo.

Quinta tentativa de te alcançar com as palavras que, durante tanto tempo, ficaram presas entre os dentes, engasgadas na garganta, silenciosas dentro de mim.

E antes de qualquer coisa — antes de qualquer confissão, justificativa ou lembrança — eu queria saber como você está.

De verdade.

Espero que as coisas tenham se acalmado aí dentro...

Dentro do peito, da cabeça, das noites insones.

Espero que o turbilhão tenha dado espaço pra alguma paz, ainda que tímida, como quem chega devagar depois de uma tempestade longa demais.

Agora que você sabe que me apaixonei por você no instante em que meus olhos te encontraram — e isso não é exagero, é memória cravada — eu posso dizer o resto. Porque o amor mesmo, o amor inteiro, aconteceu depois...

Quando você passou a ser parte da minha rotina, da minha desordem, do meu silêncio.

Te amei mais nas pequenas coisas: na forma como você dobrava as mangas da blusa, no barulho que fazia quando soprava o café, no jeito que falava do seus pais como se estivesse desenhando o céu com palavras.

Te amei quando te vi chorando sem fazer cena.

Te amei quando riu de um jeito que parecia ferida cicatrizando.

Na última carta, eu te contei como era tudo aquilo pra mim.

Mas tem mais.

Tem a parte difícil.

A parte que eu sempre evitei.

A parte que você merece saber:

O dia em que eu decidi que não podia mais ficar.

Nós tivemos inúmeros momentos que guardo comigo como quem protege uma carta antiga dentro de um livro — dobrada com cuidado, manchada de tempo, mas intacta de significado.

Momentos que, mesmo agora, ecoam dentro de mim como risos em um corredor vazio.

Mas... mesmo com tudo isso, havia algo em mim que sussurrava o tempo todo: que éramos passageiros de um trem com destinos diferentes.

Como se o bilhete do nosso encontro tivesse data e hora marcada pra terminar.

Todas as vezes que você ia embora da minha casa — com aquele último olhar pelo retrovisor, ou o som suave da porta fechando atrás de você — era como se fosse a última vez.

Mesmo que você dissesse "até amanhã", mesmo que deixasse a escova de dentes, mesmo que ainda tivesse perfume seu no meu travesseiro…

Algo em mim já estava ensaiando o adeus.

Acho que foi por isso que nossas mensagens começaram a perder o barulho.

Elas foram ficando mais espaçadas, mais curtas, mais hesitantes.

Não por falta de amor, mas por medo.

Medo de como seria a vida sem você.

E esse medo foi me empurrando pra uma distância segura. Uma espécie de autoexílio emocional.

Eu sei que não faz sentido.

Sei que, pra você, eu poderia ter ficado.

Mas dentro de mim sempre houve essa voz dizendo que eu ainda precisava consertar muita coisa em mim…

Pra, quem sabe um dia, ser o tipo de homem que você merecia.

Quando completamos três meses, eu precisei fazer uma viagem às pressas.

Você lembra?

Fui direto do escritório, ainda com o nó da gravata torto e a cabeça cheia, e você tinha um show naquela noite, uma apresentação importante… dessas que você esperava como quem espera por um sinal.


A gente não conseguiu se despedir como queria.

Eu não pude te levar.

Não te abracei direito.

Nem olhei nos seus olhos tempo suficiente pra guardar você comigo.


Minha avó tinha passado mal. Foi internada.

E eu precisei viajar — não só pra estar com ela, mas pra ser o alicerce de uma família que desmoronava em silêncio.

A estrada até a casa dos meus avós parecia mais longa do que nunca.

O céu, cinza. O ar, pesado.

E tudo em mim gritava a sua ausência.

O tempo inteiro, entre o barulho do motor e as notícias que chegavam em pílulas pelo celular, eu só pensava em você.

Em como aquela distância, mesmo necessária, poderia abrir um espaço que eu não saberia como fechar depois.

Pensei em mil maneiras de não te perder.

Mil estratégias pra romper a muralha invisível que, de algum jeito, ainda existia entre nós.

Queria ser inteiro pra você.

Queria estar tão presente quanto você sempre esteve pra mim — mesmo quando eu fingia não precisar.

Mesmo quando eu me calava.

Mesmo quando o silêncio pesava mais do que qualquer briga.

Mas eu nunca soube como fazer isso sem parecer quebrado demais.

E, naquele carro, naquele momento, eu senti o gosto amargo da impotência.

Eu queria que a gente tivesse deixado de ser apenas bom…

Queria que a gente tivesse sido ótimo.

Inesquecível. Inquebrável.

Porque eu sei — e sempre soube — que, mesmo sendo feliz ao meu lado, o seu sorriso às vezes vinha com uma pontinha de tristeza.

Um quê de vazio que eu fingia não ver, porque me doía admitir que a culpa era minha.

Era a minha ausência dentro da presença.

Era o jeito que eu não dizia.

Que eu não mostrava.

Que eu não vivia tudo com você, como você merecia.

Ainda assim, você ficava.

Você permanecia.

Você me esperava.

Porque te conhecendo como eu conheço, eu sei que você também me amava.

Talvez até mais do que eu.

E não por falta de sentimento meu, mas pela maneira como você transbordava…

Enquanto eu, muitas vezes, só escorria.

Mas te amei.

Amei muito.

Amei do meu jeito — torto, calado, contido — mas era amor, Vica.

Um amor que não sabia se mostrar, mas que morava em tudo que eu não consegui dizer.

Quando o carro parou em frente à fazenda dos meus avós, o motor ainda quente, os pneus cuspindo a poeira da estrada de terra, meu celular vibrou.

Era você.

Uma mensagem simples, mas com o peso de um abraço que atravessa distâncias:

“Fique o tempo que for necessário. Estou orando por vocês. Estou com saudades. Amo você.”

Meu coração apertou.

Aquelas palavras entraram em mim como um sussurro no meio de um vendaval.

Fechei os olhos por um segundo, como se isso fosse o suficiente pra te ter perto.

Guardei o celular no porta-luvas com o mesmo cuidado de quem guarda algo precioso demais pra deixar à vista.

E então olhei pra frente.

Na varanda, meu avô estava sentado numa cadeira de fio.

Os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto afundado nas mãos.

Uma estátua de cansaço e preocupação.

Foi ali, vendo aquela imagem crua, silenciosa, que você voltou pra mim.

Me lembrei de você.

Do jeito que segurava o próprio rosto quando estava aflita, das vezes em que se calava pra não desabar na minha frente, do modo como se doava até quando não tinha de onde tirar.

Você e meu avô, tão diferentes… e tão iguais naquele instante.

Duas almas que sabiam amar em silêncio.

Naquele momento, percebi que o amor não precisa gritar pra existir.

Mas também entendi que, às vezes, o silêncio pode machucar mais do que qualquer palavra mal dita.

Quando meu avô me viu na porta, levantou o rosto devagar, com os olhos molhados e a voz falha:

— Se eu perdê-la… o que farei sem ela? Ela é a minha vida inteira.

Eu engoli o choro, como sempre faço.

Não consegui responder com palavras — talvez porque, ali, elas seriam pequenas demais.

Apenas me aproximei e o abracei. Forte. Como se pudesse emprestar um pouco de força.

Minha avó ficou internada por dias que pareceram meses.

Foram madrugadas de orações cochichadas, cafés frios na beirada da cama e esperança sustentando o teto do hospital.

E você… você esteve lá.

Mesmo longe. Mesmo ocupada. Mesmo cansada.

Você estava.

Com mensagens, ligações, orações.

Com amor.

Mas foi naquele instante — vendo o jeito como meu avô falava dela — que algo dentro de mim quebrou com um estalo surdo.

Percebi que o que me travava com você nunca foi medo de te perder.

Era pior.

Era o medo de não conseguir te amar daquele jeito.

Desse jeito.

Com devoção.

Com entrega.

Com alma.

Do fundo do meu peito, eu sabia.

Você já me amava assim.

Com uma fé que parecia infinita.

Com uma coragem que eu nunca soube ter.

E ali, parado diante de um amor de décadas — que ainda ardia como o primeiro dia — eu me dei conta de que talvez eu nunca chegasse lá.

E você merecia chegar.

Eu percebi.

Doeu, mas eu percebi.

Mesmo sabendo o quanto você era incrível.

Mesmo sentindo, na pele, o poder que você tinha de me fazer me sentir… inteiro.

Mesmo com a paixão que nos consumia como fogo em mato seco,

com a química que explodia só de você cruzar a sala,

com o amor — sim, o amor — que havia entre nós…

Nada disso era suficiente pra curar o que havia em mim.

Porque, naquele momento, eu não era o homem que você merecia.

Não por falta de vontade.

Mas por falta de espaço.

Meu coração… ele não estava vazio.

Nem ocupado por outra.

Mas havia nele uma parte — uma ala escura, abafada, silenciosa — que era simplesmente…

inabitável.

E eu sabia que você tentaria entrar.

Com sua luz, sua esperança, sua mania de transformar ruína em lar.

Mas essa parte de mim…

Nem eu conseguia viver ali.

Como eu poderia te convidar pra morar onde até eu me perco?

Um dia antes de voltar,

mal nos falamos.

Você perguntou se eu estava bem.

E eu respondi apenas:

— Sim.

Mentira silenciosa.

Aquela que machuca mais quem ouve do que quem diz.

Naquele mesmo dia, minha avó voltou pra casa.

Frágil, mas viva.

E quando vi meu avô ajeitando a almofada atrás das costas dela,

oferecendo chá como quem oferece um pedaço do próprio coração,

eu entendi.

Entendi por que você me lembrava tanto ela.

Não era só pela força ou pelo jeito de cuidar.

Era pela capacidade absurda de permanecer — mesmo quando tudo em volta desaba.

Você era como ela.

Um tipo raro de amor que precisa ser celebrado todos os dias.

Um amor que exige — e merece — devoção.

E eu…

Eu só podia te dar 70%.

Quando o que você precisava era 100.

Perceber isso foi como morder vidro.

Me doeu mais do que posso te explicar.

Mas naquele instante, eu soube:

ficar ao seu lado, do jeito que eu era,

ia acabar te destruindo aos poucos.

Não porque eu quisesse,

mas porque eu não sabia — ou não conseguia — ser mais do que isso.

Eu ajeitava minha mala no banco de trás.

Fechava o porta-malas como quem fecha uma fase.

Já ia dar partida no carro quando meu avô se aproximou, com as mãos cruzadas nas costas e a voz cansada de quem viveu muito pra saber a hora certa de dizer pouco.

Ele me olhou, firme.

Como quem vê além do que é dito.

E soltou:

— Se você não pretende se casar com ela, saia da frente do marido dela.

A frase caiu entre nós como um raio em dia limpo.

Sem trovão, sem aviso.

Só aquele clarão no peito e o cheiro de coisa queimada dentro da alma.

Fiquei ali, parado, com a chave na mão.

O motor ainda desligado.

E o coração… também.

Não respondi.

Nem consegui.

Só senti.

Porque naquele momento, ele não falava só da minha avó.

Nem só de você.

Falava de hombridade.

De coragem.

De não ocupar um lugar que não se pode honrar.

De não prometer presença quando a ausência já mora dentro.

E eu entendi.

Ficar com você sabendo que eu não conseguiria te dar o sempre —

era tirar de outro homem a chance de te dar tudo.

E pior…

Era roubar de você a chance de viver um amor inteiro.

Eu chorei naquele dia.

Chorei com o gosto salgado daquilo que a gente não escolhe sentir.

Por Deus…

Como eu queria estar pronto.

Como eu queria ser inteiro só seu.

Te dar o melhor de mim.

Te mostrar o futuro com meu nome ao lado do teu, numa porta qualquer.

Mas continuar fingindo?

Ou tentar forçar um “pra sempre” com o peito pela metade?

Ia nos destruir.

Ia matar em você a esperança que sempre me salvou.

Ia matar em mim o resto de decência que ainda resistia.

E por mais que eu tenha falhado —

em não dizer, em não mostrar, em não estar —

eu sei.

Ter ido embora foi a decisão mais saudável.

A mais justa.

A mais cruel.

Eu nunca seria seus 100%.

E você…

Você merecia um amor que não ficasse devendo nada.

Levei um tempo até conseguir aceitar que não dava mais.

E mais tempo ainda pra ter coragem de colocar um ponto final.

Perdão por não ter sido claro.

Por ter deixado você tentando decifrar silêncios que já eram despedidas disfarçadas.

A verdade é que eu soube, naquele dia, que as coisas entre nós não durariam.

Mas me prolonguei.

Me arrastei.

Porque sair da tua vida era como tentar apagar o sol com um sopro.

E eu queria...

Queria ter mais um pouco de você em mim.

Queria me dar a chance de lembrar com todos os sentidos que alguém como você passou pela minha vida.

A forma como sorria torto antes de dizer algo bobo.

O jeito como seus olhos apertavam quando ria de verdade.

A calma que sua presença me dava mesmo nos meus dias mais barulhentos.

Eu me estendi no adeus porque...

Porque às vezes a gente demora pra soltar o que nunca deveria ter segurado.

Três dias depois que voltei, saímos pra jantar.

Você ia se apresentar naquele lugar pequeno, íntimo, com luz baixa e alma alta.

Você não sabia, mas eu planejei tudo pra ser uma despedida disfarçada de noite perfeita.

Convidei alguns amigos pra garantir que o lugar estivesse cheio.

Comprei um vestido vermelho pra você — aquele que te fazia parecer uma estrela descendo do céu.

E me vesti com o melhor terno que encontrei, não por vaidade, mas porque queria que você se lembrasse de mim com carinho.

Naquela noite, você tocou State Lines.

E eu juro…

Você era magnética.

Hipnótica.

Sorria como quem carrega o universo nos lábios.

E tocava como se seus dedos tivessem ensaiado aquele piano por todas as vidas que viveu antes de mim.

O lugar estava lotado, mas seus olhos —

seus olhos me procuravam.

E por segundos, apenas segundos…

eu vi.

Vi um sorriso triste no meio do brilho.

Como se você já soubesse.

Como se uma parte sua sentisse que aquela seria nossa última vez.

Ali, naquele momento em que você brilhava mais do que nunca,

eu soube que precisava ir embora.

Quando o show terminou, eu te entreguei o maior buquê de flores que já carreguei nos braços.

E te dei o beijo mais sincero da minha vida.

Um beijo que dizia tudo que minha boca nunca teve coragem de falar.

Ali, no meio do seu palco, você era luz.

E eu era só sombra tentando não ofuscar mais ninguém.

Naquela noite, fizemos amor em todos os cômodos da minha casa.

Como se cada parede precisasse guardar um pedaço de você.

Como se, ao ocupar todos os espaços, eu tentasse preencher o que em mim sempre foi ausência.

Seus toques eram casa.

Sua pele, abrigo.

E eu desejei, com tudo em mim, que o tempo parasse ali.

Entre um lençol e um suspiro.

Mas o tempo, esse traidor, seguiu.

Você adormeceu tranquila, com o corpo colado ao meu e o coração desarmado.

E eu…

Eu não preguei os olhos.

Fiquei te olhando como quem decora uma cena antes do fim do filme.

Como quem sabe que, ao amanhecer, nada mais seria igual.

Naquela noite, enquanto você dormia…

eu me despedi de você.

Em silêncio.

Com os olhos.

Com a alma.

Uma semana depois, eu fui embora de forma definitiva.

Não deixei bilhetes.

Não deixei rastros.

Apenas desapareci como quem morre em vida.

Não atendi mais suas ligações.

Te bloqueei em tudo — não por raiva, mas por medo.

Medo de que, se eu ouvisse sua voz, voltasse correndo.

Medo de que seu amor me salvasse — quando eu não queria ser salvo, queria te livrar de mim.

Foi covarde.

Eu sei.

E por isso…

Eu peço desculpas.

Desculpas por não ter dito olhando nos seus olhos.

Por não ter permitido que você lutasse por mim — quando o problema era que eu nunca soube lutar por ninguém.

Mas, ainda assim…

Eu espero que um dia, com o coração em paz, você entenda:

o único sorriso que eu quero guardar é aquele do dia em que te conheci.

O primeiro.

O mais sincero.

O mais inteiro.

Aquele que não carregava mágoa, nem saudade.

Só promessa.

Só luz.

Guardo esse sorriso comigo, como um relicário escondido.

E é com ele que me despeço, mesmo sem você saber.

Adeus, minha quase.

Meu talvez.

Minha certeza não vivida.

Com amor —

Augusto