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Cartas para Vica - Costurada a mim por Augusto Castillo

 Leia ouvindo : Je te laisserai des mots - Patrick Watson




Querida Vica,

Ainda me falta coragem. Ainda tropeço nas palavras, mesmo quando elas só precisam alcançar o papel. Mas continuo aqui — tentando. Porque há coisas que você precisa saber. Coisas que ficaram entaladas entre os silêncios que eu empilhei, achando que estavam me protegendo, quando na verdade só me afastavam de você.

Na última carta, confessei que me apaixonei por você no dia em que te conheci. Mas isso... isso foi só o começo. A verdade é que naquele dia — quando você sorriu sem perceber, mexendo no cabelo como se o mundo não estivesse prestes a virar do avesso — alguma coisa dentro de mim cedeu. Como se o universo, esse velho teimoso, tivesse finalmente apontado o dedo e dito: é ela.

E a gente sabe que o problema dos começos é que a gente nunca imagina o que vem depois. O quanto vai doer. O quanto vai marcar.

Mas eu tô pronto pra contar. Pra te dar o que te neguei: a verdade inteira.

Naquele dia, tudo se resumiu a um brinde.

Um gesto pequeno, quase bobo… mas que, pra mim, virou eternidade.

Anos percorrendo os corredores daquele prédio, andando entre paredes que sempre pareceram iguais, e foi só quando encostei meu copo invisível no seu — como se o universo tivesse combinado aquilo com antecedência — que alguma coisa acendeu em mim. Como se eu tivesse finalmente chegado em casa.

Você nem percebeu, né?

Que aquele brinde silencioso foi o ponto alto de tudo. Que naquele segundo, entre sorrisos e olhares que fugiam um do outro, eu já sabia que nada mais seria igual.

E não foi.

Desde então, tudo que eu vivi passou a ter um antes e um depois de você.

Nós não nos falamos por um fim de semana inteiro.

Mas eu entrei no seu perfil. Vi todas as suas fotos, uma por uma, como quem revisita um lugar que nunca pisou, mas jura que conhece.

E eu não sei como explicar isso sem parecer insano, mas…

A cada imagem sua, eu sentia que estava perdendo alguma coisa que nunca tive.

Era como sentir saudade de um futuro. De um ‘nós’ que nem existia ainda.

Foram três dias longos demais pro que eu sentia na época — três dias de 'e se eu mandar mensagem?',

de 'será que ela pensou em mim?',

de 'por que ela tá sorrindo nessa foto e não aqui comigo?'

E talvez eu não tenha me apaixonado por você só naquele brinde invisível. Talvez eu tenha me apaixonado enquanto imaginava como seria segurar sua mão entre uma foto e outra.

Enquanto criava uma história na minha cabeça com alguém que já tinha deixado marca só por existir na minha frente por alguns minutos.

Naquela noite, eu dormi e sonhei com você.

No meu sonho, você dançava — livre, leve, como se o mundo tivesse esquecido de pesar sobre os seus ombros.

Você ria. Aquela sua risada que parece sol de fim de tarde — quente, acolhedora, um pouco rara.

Você abraçava as pessoas ao seu redor com uma ternura que me desarmava até no plano do inconsciente.

Mas o que me matou foi o seu olhar.

Mesmo em meio ao movimento, aos risos, aos braços alheios, seus olhos não saíam de mim.

Como se, de alguma forma, mesmo em sonho, você ainda estivesse tentando me alcançar.

E talvez ali, só ali, eu tenha entendido que já era tarde demais pra fingir que aquilo tudo não tinha me atravessado.

Quando acordei, mandei uma mensagem pra você.

Porque sonhar já não bastava.

Porque o travesseiro ainda guardava o cheiro do que eu imaginei ser seu perfume.

Porque, no fundo, eu só queria te ver de novo.

Sentir sua presença, sua risada, aquela leveza absurda que você carrega mesmo sem perceber.

Não acredito em encontros aleatórios — nunca acreditei.

Tem gente que passa, mas tem gente que permanece antes mesmo de ficar.

E você… você ficou em mim desde o primeiro instante.

Escrevi:

'Olá, obrigado pelo brinde. Você tem cheiro de verão.'

Foi o máximo que eu consegui pensar.

Uma tentativa tímida, quase infantil, de dizer o quanto você já morava em mim — mesmo depois de tão pouco.

Não me leve a mal, é que certas pessoas não precisam de tempo. Só de um olhar, um gesto, um brinde invisível.

Você não demorou a responder.

E quando ouvi sua voz pela primeira vez…

'Ser comparada ao verão é um baita elogio. Prazer, Vica.'

Em um áudio de poucos segundos, você conseguiu rir e se apresentar como se o mundo fosse leve — e talvez ele fosse, com você nele.

O jeito como seu nome saiu da sua própria boca… parecia música.

E eu ouvi esse áudio umas dez vezes seguidas, só pra ter certeza de que era real.

E era.

Era você.

Chegando devagar, mas ficando de um jeito que ninguém nunca tinha ficado.

Aquilo foi o suficiente.

Uma troca de mensagens que virou conversa, e a conversa virou vontade.

E a vontade, bem… virou encontro.

A gente passou o dia inteiro trocando palavras como quem tenta decifrar um idioma novo — o idioma um do outro.

Cada resposta sua me fazia querer mais. Mais tempo. Mais voz. Mais você.

No fim daquela tarde, sem nem perceber, eu já estava te convidando pra sair.

E você aceitou como se já soubesse que aquilo não era só um passeio.

Era o começo de algo que, mesmo sem nome, já fazia sentido demais.

Marcamos de nos ver à noite.

E, por mais que eu tentasse manter a calma, meu coração batia como se já soubesse que ali…

Ali começava o caos mais bonito da minha vida.

Meu coração passou o dia em contagem regressiva.

A ansiedade me acompanhava feito sombra — discreta, mas constante.

Eu tentava focar em outras coisas, mas cada pensamento, cada distração, terminava em você.

A gente ia se ver de novo naquela noite.

Mas, dessa vez, sem multidões, sem disfarces, sem a distância educada que os outros impunham.

Seria só eu e você.

E a chance de, enfim, fazer um brinde que não fosse imaginário.

A ideia de te encontrar de novo me deixava num estado que eu não sei nomear — era mistura de nervoso com euforia, medo com desejo.

E, no fundo, uma esperança silenciosa de que a noite terminasse com seus olhos nos meus,

e um brinde real...

não só com o copo, mas com tudo que eu não tive coragem de dizer da primeira vez.

Me vesti de preto naquela noite.

Não porque planejei, mas porque era o que meu corpo pegou sem pensar — como se, no fundo, ele soubesse que preto era a cor que menos denunciaria o nervosismo.

Dirigi até o seu apartamento com as mãos trêmulas no volante, o coração batendo num compasso estranho — entre o medo e a expectativa.

Você havia liberado minha entrada, mas eu, covarde, não consegui subir.

Fiquei ali, parado dentro do carro, com o motor desligado e as ideias aceleradas.

Olhava pro interfone como quem encara um precipício: tentado a pular, mas sem coragem de mover o pé.

O curioso é que eu já estive em salas frias com homens poderosos. Já assinei contratos que mudariam rumos. Já fui encarado por pessoas que queriam engolir minha alma.

E nem nessas vezes minhas mãos suaram como suaram naquela noite.

Porque você não causava medo.

Você causava algo pior.

Uma felicidade estranha, inquieta...

Daquelas que não se confia de cara, porque parece boa demais pra durar.

Você demorou quinze minutos pra descer.

Quinze minutos.

Tempo suficiente pra minha ansiedade construir mil versões suas na minha cabeça.

Tempo suficiente pro banco do carro virar uma prisão e aquela porta do elevador virar o único ponto fixo do meu mundo.

Meu olhar não desgrudou dali.

A cada movimento, meu peito se contraía.

A cada sombra no corredor, meu coração vacilava.

E então, você apareceu.

Com aquele sorriso que parecia ter sido ensaiado só pra mim.

E tudo fez sentido de novo.

Meu mundo, que por quinze minutos ficou suspenso, voltou a girar no exato momento em que seus olhos encontraram os meus.

A porta finalmente se abriu.

E lá estava você.

Usando um vestido longo cor-de-rosa, sem decotes, mas com as costas completamente à mostra.

Era simples. E ao mesmo tempo, arrebatador.

Naquele instante, entendi que você tinha o dom de transformar qualquer coisa em poesia só por existir dentro dela.

E aquele vestido... era só mais uma das muitas estrofes do seu encanto.

Seu cabelo estava solto, dançando levemente com o vento do corredor.

E ao invés de andar até o carro, você veio correndo.

Correndo com um sorriso tão largo, tão sincero, que por um momento eu achei que fosse por mim.

Juro que acreditei que aquele sorriso era meu.

Mais tarde, eu descobriria que você sorri com frequência. Que sorri pro mundo.

Mas, naquela noite, não importava.

Naquela noite, aquele sorriso era o suficiente pra me fazer querer mais de você.

Muito mais.

Meus olhos não conseguiam desgrudar de você.

Era como se o mundo inteiro tivesse virado borrão, e só você estivesse em foco.

Assim que entrou no carro, seu cheiro de morango preencheu o ar como se fosse uma lembrança que eu ainda nem tinha vivido.

Foi inevitável: prendi a respiração por um segundo. Só pra guardar aquilo. Só pra sentir melhor.

Você disse “Oi” com a voz leve, quase cantada. E antes que eu dissesse qualquer coisa, me abraçou.

Foi um abraço rápido, mas verdadeiro.

E quando se afastou… ainda sorria.

Aquele sorriso que me desmontava por dentro. Que dizia “fica” sem precisar de som.

Foi ali que aconteceu.

Antes que eu pensasse. Antes que o medo me puxasse de volta.

Eu te beijei.

Um beijo calmo, mas cheio de urgência. Um beijo que não perguntava, só sentia.

Como se meus lábios estivessem tentando dizer tudo que a minha boca não tinha coragem.

Parecia tão certo quanto o nascer do sol.

Tão inevitável quanto a criação da terra.

Beijar você foi como obedecer a uma ordem invisível — algo maior do que nós dois, como se o destino estivesse sussurrando: agora.

Mas no segundo seguinte, o arrependimento me pegou pelo colarinho.

Fui engolido pela dúvida — pensei que talvez eu tivesse ultrapassado um limite.

Primeiro encontro. Primeiro beijo. Talvez cedo demais.

Talvez tudo demais.

Até que você respondeu.

Com suavidade, sem hesitação.

Sua mão pousou sobre o meu pescoço, quente, decidida, como quem diz ‘fica’.

E ali, no toque da sua pele sobre a minha, eu entendi:

você estava no mesmo lugar que eu.

No mesmo desejo.

Na mesma coragem disfarçada de medo.

E naquele instante, mesmo em silêncio, a gente disse tudo.

Parecia tão certo quanto a criação da Terra.

Como se o mundo tivesse sido feito só pra aquele momento acontecer.

Beijar você foi como encontrar uma resposta antes mesmo de entender a pergunta.

Mas no segundo seguinte, o peso da consciência me caiu sobre os ombros.

Era o nosso primeiro encontro. Eu não queria parecer precipitado. Invasivo.

Tive medo de ter ultrapassado um limite que você não me deu permissão pra cruzar.

Mas então… você retribuiu.

Sem hesitação. Sem medo.

Como se já soubesse que esse momento chegaria — e o desejasse tanto quanto eu.

Sua mão pousou no meu pescoço com uma delicadeza firme.

E foi aí que entendi:

o que aconteceu entre a gente não foi um passo em falso,

foi o primeiro passo certo em direção a tudo que a gente ainda não sabia que ia sentir

Aquilo foi tão certo quanto isso que escrevo agora.

Ali, naquele beijo, eu soube — sem dúvida, sem medo — que nós dois éramos bons juntos.

O tipo de bom que não se ensina. Que não se ensaia.

Apenas acontece.

Como um eclipse que ninguém previu, mas muda tudo quando chega.

Meu corpo inteiro se eletrizou.

Cada célula reconheceu a sua presença como um lar antigo.

E o meu mundo, que até então era uma paleta de cinzas previsíveis, foi invadido pelo caos bonito do seu verão.

O beijo quente se tornou calmo.

Como se o fogo, depois de incendiar tudo, tivesse se deitado ao lado do mar.

E quando você se afastou, ainda com aquele seu sorriso bobo e corajoso,

eu já sentia saudade.

Saudade de algo que ainda nem tinha acabado.

Saudade sua — que nasceu naquele instante e, confesso, nunca mais foi embora.

Naquele dia, você me fez reencontrar uma versão minha que estava esquecida.

Guardada num canto empoeirado da alma — tão esquecida, que eu já nem lembrava que existia.

Uma versão leve.

Uma versão bonita.

Uma versão que sorria sem calcular, que vivia sem precisar fingir força o tempo todo.

Jantamos no seu restaurante favorito —

coincidência ou destino, também era o meu.

Mas eu não te contei. Guardei essa informação como quem esconde uma joia preciosa, com medo de estragar a magia do acaso.

Você não fez piada naquela noite,

mas quando o rapaz começou a cantar To Build a Home,

você simplesmente se levantou, sem pedir permissão pra ninguém,

e pediu pra acompanhá-lo no piano.

E foi…

uma das cenas mais lindas que eu já vi na vida.

Você era pura graça.

Como se tivesse nascido ali, entre notas e teclas, com o corpo dançando sutilmente enquanto seus dedos tocavam esperança.

E quando você cantou “Out in the garden where we planted the seeds…”,

eu soube que nunca mais ouviria essa música sem lembrar de você.

Foi um privilégio.

Um privilégio ver seu verão se misturar à primavera naquele restaurante.

Ver a luz que você carrega dentro de si transbordar sem esforço,

e perceber que, por algum milagre torto, ela também iluminava a mim.

Depois do jantar, saímos do restaurante com a cidade se abrindo em volta como se soubesse o que estava acontecendo.

A noite estava morna, e o céu... aquele céu absurdo, sem nuvem, cheio de estrela — parecia até cenário montado.

Você caminhava ao meu lado e falava sobre a infância, sobre seu medo de altura e sobre como sempre quis aprender a surfar.

Eu não dizia muito. Mas te ouvia com uma atenção que até hoje não sei explicar.

Era como se cada frase sua ocupasse um espaço em mim que, até então, estava vazio.

Eu só queria que você falasse mais.

Queria te ouvir até esquecer dos meus próprios pensamentos.

Paramos numa esquina, onde a luz do poste dourava teu rosto.

Você riu de algo que eu disse — uma das poucas vezes em que fui engraçado de verdade —

e aí aconteceu:

você segurou minha mão.

Sem aviso. Sem roteiro.

Só colocou os dedos entre os meus e continuou andando, como se aquilo já fosse hábito, como se seu corpo tivesse me escolhido antes mesmo de você perceber.

Foi aí que meu coração cometeu o maior dos erros:

ele acreditou que você era casa.

O caminho até o carro pareceu curto demais.

Eu queria mais tempo. Mais rua. Mais desculpas pra não te deixar.

Quando estacionei, o silêncio tomou conta.

Não aquele silêncio desconfortável, sabe?

Mas aquele que grita tudo o que a gente ainda não teve coragem de dizer.

O tipo de silêncio que aperta o peito e aquece a pele.

Meu único pensamento era encontrar uma nova desculpa para te ver de novo.

Qualquer desculpa. Um café esquecido, um livro que eu nunca li mas precisava te emprestar, uma dúvida sobre a música do restaurante — qualquer coisa que me levasse de volta até você.

Porque, naquela noite, eu não queria só prolongar o momento.

Eu queria a chance de repetir.

Queria que nossos encontros se tornassem rotina.

Queria que você fosse meu verão — aquele que chega iluminando tudo, aquecendo até o que eu achava que estava morto, e deixando saudade antes mesmo de ir embora.

Você se virou pra mim e perguntou, num tom leve:

'Quer subir?'

E eu juro, Vica, juro por tudo que sou,

que naquele segundo eu quis dizer sim.

Quis subir.

Quis te beijar de novo.

Quis te conhecer por inteiro — cada trauma, cada gosto, cada cicatriz escondida.

Mas ao invés disso, eu sorri e disse:

‘Não hoje. Mas em breve, se você quiser.’

E você assentiu, com os olhos cheios de uma ternura que quase me desmoronou.

Te deixei ali, na porta do prédio, com o coração acelerado e a alma tropeçando.

E quando entrei no carro e encostei a cabeça no volante, entendi que estava ferrado.

Porque naquele momento, eu não só gostava de você.

Eu já estava caindo.

Caindo fundo.

Me dei conta ali — ali mesmo, entre a última curva do caminho e o eco da sua risada no meu peito — que todo o vendaval que passou pela minha vida antes de você não foi caos. Foi direção. Cada perda, cada silêncio, cada desvio, tudo me trouxe até o nosso brinde invisível. Até você.

Você, com seu vestido rosa e aquele cheiro que tomou o carro. Você, com sua música no piano e o dom de me fazer lembrar quem eu era antes do mundo me endurecer.

Até o seu silêncio me preenchia.

E agora, escrevendo essa carta, revivendo cada detalhe com a memória afiada de quem sente falta até da sua respiração... eu consigo lembrar exatamente a sensação de ser seu. Não “ter” você. Ser seu. E isso — essa sensação — é o que me faz escrever, mesmo que tarde, mesmo que em pedaços.

Me desculpe, querida.

Por ter te amado em silêncio, quando você merecia ouvir em alto e bom som.

Por ter sido o medo, quando você só queria o verão.

Por ter me calado, quando tudo que você precisava era verdade.

Mas se cartas têm alguma força — que essa chegue como uma brisa no meio da sua tarde e sussurre:

Eu fui feliz com você.

Mesmo quando não soube demonstrar.

Se amar você foi um acaso, então que sorte a minha viver no erro mais bonito da minha vida.

Com tudo que ainda existe em mim,

— De mim pra você.


Augusto Castillo.