Leia ouvindo : To Build a Home
Querida Vica,
Na última carta, meus dedos tremiam tanto que molharam o teclado — não sei se era suor ou as lágrimas que eu jurei não deixar cair.
Pra te explicar tudo, preciso voltar. E voltar, Vica, é como abrir uma caixa antiga, cheia de lembranças que ainda têm cheiro, cor, peso.
Dói.
Mas você merece saber. Você sempre mereceu a verdade nua, mesmo quando eu me escondia por trás do silêncio.
Então vamos continuar...
Nos tornamos inseparáveis desde o primeiro beijo — como se nossos lábios tivessem selado um pacto antigo, desses que a alma reconhece antes da mente entender.
Depois do nosso primeiro encontro, passamos a nos ver com frequência quase religiosa. Você cantava nas noites — e como cantava... — e eu trabalhava incansavelmente durante o dia.
Mas mesmo quando o mundo não conspirava a favor, quando nossos horários não se alinhavam, a gente dava um jeito. Longas chamadas de vídeo viraram nosso abrigo. Você do outro lado da tela, rindo, cantando, às vezes só respirando — e isso já era suficiente pra me fazer sentir em casa.
A consequência inevitável? Minhas viagens a trabalho foram diminuindo, uma por uma. Eu, que antes rodava o país sem olhar pra trás, comecei a recusar oportunidades só pra não passar mais tanto tempo longe de você.
Porque a verdade é que… depois de você, a distância começou a doer de um jeito que eu nunca tinha sentido.
Eu descobri que o seu perfume tinha sido feito especialmente pra você — e, por isso, ninguém mais no mundo carregava o mesmo cheiro.
Era único. Como você.
Descobri que seu sorriso não era um gesto ocasional... você sorria mesmo. Sorria até quando o mundo parecia cinza.
E que falar demais era sua forma de existir no mundo — um jeito lindo de preencher os silêncios e afugentar as dúvidas.
Descobri que você aprendia tudo com uma facilidade irritante e fascinante ao mesmo tempo — como se o mundo fosse só mais um quebra-cabeça esperando pra ser decifrado por você.
Que ficava inquieta às 23h, como se algo dentro de você se acendesse bem na hora em que o resto do mundo começava a apagar.
Descobri que você chora toda vez que as coisas não saem como planejou — não por você, mas pelos outros. Porque você sente demais, por todo mundo.
E descobri, talvez com mais ternura do que eu gostaria de admitir, que você esquenta o leite por exatos 37 segundos no micro-ondas.
Nem muito quente. Nem frio demais. O tempo perfeito. Como você.
Eu sempre falei pouco. Mas te amei em gestos silenciosos.
Naquelas noites em que a gente não conseguia se ver porque você estava cantando em algum palco por aí, eu estava lá.
Escondido.
Sempre com o mesmo boné — aquele com a letra “L” gravada na aba, como se fosse meu jeito secreto de te dizer que era por você que eu respirava mais fundo.
Você nunca soube, mas eu nunca perdi um show seu. Nenhum. Desde o dia em que te conheci.
Fiz uma playlist inteira só com as músicas que você cantava.
Porque, de algum jeito estranho e bonito, ouvir sua voz me fazia sentir perto de você.
Como se o amor tivesse som. E o som fosse você.
E, Vica, tem algo que você nunca soube.
Aquelas rosas que chegavam ao fim dos seus shows — todas elas.
Não eram de admiradores aleatórios.
Eram minhas.
Cada flor era um jeito disfarçado de te aplaudir de pé.
De gritar “eu te amo” mesmo sem usar a boca.
De fazer você se sentir amada… mesmo sem saber que era por mim.
Acho que, às vezes, você se pergunta por que eu nunca fiz nada.
Por que calei quando devia ter corrido atrás.
Por que permaneci imóvel enquanto tudo entre nós escorregava pelos dedos.
Mas, Vica, a verdade é que… se eu tivesse feito qualquer coisa naquela hora,
se eu tivesse falado o que fervia no meu peito,
talvez o estrago tivesse sido ainda maior.
Talvez não houvesse volta.
Nem carta.
Nem lembrança boa pra se apegar.
Ficar em silêncio foi covardia, eu sei.
Mas foi a única forma que encontrei de te proteger…
inclusive de mim.
Guardo na memória — com uma nitidez quase cruel — todas as vezes em que fui te buscar pra jantar.
Lembro do som dos seus passos apressados descendo as escadas, do seu sorriso antes mesmo de abrir a porta.
E das cores dos seus vestidos…
Na quarta-feira, sem falta, era rosa. Sempre rosa.
Como se teu corpo já soubesse que aquele dia pedia delicadeza.
Você pedia Aperol, mesmo fazendo careta no primeiro gole, e sorria dizendo que estava aprendendo a gostar.
No final da noite, era sempre petit gâteau, e você comia devagar, como se cada colherada pudesse adiar o fim daquele encontro.
Como se a gente pudesse esticar o tempo com açúcar e afeto.
E talvez pudesse, se eu tivesse tentado mais.
Se eu tivesse me permitido sentir sem medo de perder.
Aprendi que você assistia aos mesmos filmes porque tinha medo de se decepcionar com novas histórias.
E, meu amor, me perdoa…
Eu nunca quis ser uma história nova que te machucasse.
Eu também aprendi a amar os filmes repetidos, porque com você até os finais conhecidos pareciam diferentes.
Talvez porque ao teu lado tudo ganhasse um novo significado.
Não comprei um teclado porque queria aprender.
Comprei porque gostava de te ouvir tocar.
Gostava quando, no meio do meu expediente, você surgia do nada, sentava-se na pontinha da cadeira e deixava os dedos correrem pelas teclas, como quem escreve cartas em notas musicais.
Era sempre qualquer melodia, qualquer coisa, mas pra mim era tudo.
Eu já disse, mas você era tão graciosa.
E eu?
Eu era só o silêncio encantado de quem te assistia como quem vê um milagre acontecer dentro da sala de estar.
Eu nunca fiz uma só coisa de forma casual quando se tratava de você.
Nunca foi automático, nunca foi distraído.
Eu sempre prestei atenção nos detalhes —
no jeito como você dobrava a manga da blusa,
no tom exato da sua risada quando gostava muito de algo,
no que fazia seus olhos brilharem sem que você percebesse.
Porque, no fundo, tudo que eu queria… era que estar comigo também se tornasse uma das coisas que você gostava.
Talvez a sua favorita.
Eu menti quando disse que não te puxava durante a noite de forma inconsciente.
Todas as vezes… foram de propósito.
Sempre fui eu, estendendo o braço na escuridão só pra te sentir perto.
Pra garantir que você estava ali. Que era real.
Eu queria você tão próxima a ponto de ouvir sua respiração, como se ela pudesse embalar os meus próprios sonhos.
Porque, no fundo, eu sabia — nós éramos finitos.
E você...
Você era uma memória que eu queria colecionar pra sempre.
Mesmo que fosse só na minha cabeça.
Eu descobri que te amava num dia comum que virou tudo,
num daqueles em que o mundo pesa mais do que deveria.
Tive a maior reunião da minha carreira, com um cliente difícil, daquelas que tiram até as palavras da boca.
Voltei pra casa exausto, monossilábico, um silêncio ambulante.
E você...
Você apareceu na minha porta.
Sem exigência, sem cobrança, sem pergunta.
Só você.
Com uma expressão mansa e um moletom velho, como se soubesse exatamente o que fazer —
ou melhor, o que não fazer.
Você se sentou ao meu lado, sem dizer nada.
Pronta pra estar em silêncio comigo.
E foi aí.
Na ausência de palavras, na presença da sua calma,
que eu soube:
era amor.
Porque só se ama de verdade quando o outro se torna lar mesmo quando o mundo lá fora desmorona.
Você fez chocolate quente pra mim…
porque chocolate quente te deixava feliz.
E, de alguma forma, você acreditava que aquilo podia funcionar pra mim também.
Como se a felicidade fosse contagiosa no vapor de uma xícara.
E foi.
Eu aprendi com você a não desistir.
A sorrir mesmo quando tudo parece desabar.
Você me ensinou que ser forte não é sobre aguentar tudo sozinho,
mas sobre permitir que alguém nos alcance nos dias difíceis.
Você me ensinou, com jeitinho, com sua fé teimosa no mundo,
que até o pior dia pode terminar com um pouco de açúcar e carinho na caneca certa.
Naquele dia, dois meses depois de termos nos escolhido sem dizer em voz alta,
eu tomei a decisão silenciosa de fazer tudo o que fosse preciso para nunca mais ficar sem você.
Foi o dia em que a gente parou de apenas se olhar…
e finalmente se pertenceu por inteiro.
Foi o dia em que fizemos amor.
De verdade.
Com o corpo, com a alma, com tudo aquilo que a gente tentava esconder,
mas que já transbordava há tempos.
Quando tudo terminou naquela noite,
você me olhou com os olhos marejados de quem não queria perguntar, mas precisava saber.
“É assim com todas?”, você disse, tentando parecer forte.
“Seus olhos... eles mentem?”, você sussurrou, quase como um desabafo.
E eu menti.
Disse que não era nada além de química.
Como se meu corpo não tivesse implorado por você em silêncio por semanas.
Como se meu peito não tivesse quase explodido ao ver você dormindo do meu lado.
Como se o que eu sentia não fosse, na verdade, tudo.
Tocar você era como abrir uma fresta no cofre onde eu escondia tudo o que me fazia vulnerável.
E naquele dia... aquele beijo...
Minhas mãos presas nas suas, os segundos em que eu parava só pra mergulhar nos teus olhos —
como se o mundo pudesse esperar a gente se entender no silêncio.
Ter te chamado de meu amor não foi descuido.
Foi desejo. Foi coragem. Foi o coração pulando o script.
Nada ali foi casual.
Eu queria que você ficasse.
Queria que aquilo — nós dois, entre suspiros e promessas sussurradas — fosse um sempre.
E naquele instante, entre gemidos e juras que a pele entende antes da boca,
eu pedi pra sermos um do outro.
E você disse que sim.
Como quem também tava pedindo o mesmo — sem palavras, mas com o corpo inteiro.
Me desculpe por não ter sido sincero nas vezes em que você implorou — com os olhos, com o corpo colado ao meu, com o silêncio carregado de perguntas.
Me desculpe por ter negado, por ter recuado.
Por ter fugido.
Não existe justificativa, eu sei.
Mas a verdade é que... você era demais pra mim.
Grande demais. Intensa demais. Real demais.
E eu era um homem pequeno diante de tudo isso, tentando caber dentro de mim mesmo enquanto você me transbordava.
Você estava certa.
Os olhos...
Eles nunca mentem.
E os meus — mesmo quando a boca se calava e o gesto falhava —
os meus te amaram.
Em todos os dias.
Em todos os instantes.
Enquanto estivemos juntos.
E talvez ainda amem.
Mesmo depois.
Mesmo agora.
Com todo amor que eu soube sentir,
Augusto Castillo