Pular para o conteúdo principal

Cartas para Vica - Para o verão que me queimou por Augusto Castillho


Ludovica Russo e Augusto Castillo

Leia ouvindo : Cherry Wine - Hozier 


Querida Vica,

Não sei por onde começar, então vou começar pelo que mais pesa: eu te devo explicações. Por cada silêncio que gritou entre nós. Por cada confusão que plantei sem coragem de colher. Por tudo que deixei subentendido quando você só queria clareza.

Talvez agora, com a distância me engasgando e a saudade fazendo morada, eu consiga te contar tudo o que nunca consegui dizer em voz alta. Não é uma tentativa de reconquistar, nem uma desculpa enfeitada — é apenas a verdade, crua, talvez atrasada, mas ainda assim necessária.

Preciso que você saiba, de uma vez por todas, o que realmente aconteceu. Por que me calei, por que me afastei, por que fiz parecer que o problema era você... quando, na verdade, era tudo aqui dentro.

Então aqui vai.

A história do dia em que eu me tornei, talvez, o homem mais covarde da Terra.

Covarde porque já sabia — desde antes do primeiro passo em sua direção — que aquilo era um incêndio prestes a apagar. Um fogo passageiro, desses que aquecem por segundos e depois viram cinza no peito.

E mesmo assim...

Mesmo assim, eu fui até você.

Fui porque soube que te ver seria o suficiente pra esquecer, por um instante, tudo que me dizia pra parar. Fui porque o desejo gritou mais alto que a razão. Porque o vazio que eu carregava se preencheu só de pensar na sua voz dizendo meu nome de novo.

E, no fundo, talvez eu tenha mentido pra mim mesmo. Fingido que era mais do que era. Fingido que seria diferente. Que eu seria diferente. Mas não fui.

Você era o verão.

E não digo isso da boca pra fora, como quem faz elogio vazio. Digo porque era real — você tinha a temperatura de uma tarde de janeiro, o brilho de um céu sem nuvens, o gosto agridoce de manga no queixo e sal na pele.

Você era o verão porque chegava como um sol no peito: esquentando tudo o que antes era frio em mim.

Era aquele tipo raro de calor que não sufoca — só desperta. Acordava sentidos que eu nem lembrava que tinha.

Você tinha o caos bom dos dias longos, onde a gente perde a hora, esquece o tempo, e vive como se a eternidade coubesse em um fim de tarde.

Era o verão porque tudo em você era intensidade.

Era aquela brisa morna que arrepia mesmo sem vento. Era a luz que atravessava as cortinas da alma. Era o corpo vibrando ao som de uma música que só você parecia escutar.

Até o seu silêncio tinha claridade.

Até sua ausência deixava marca de sol na pele.

Você era o verão.

E eu?

Eu era o cara que chegou de casaco, sem protetor, sem preparo, achando que ia passar ileso por você.

Eu lembro bem.

Lembro das rodas que se formavam naturalmente ao seu redor, como se você fosse uma fogueira em volta da qual todo mundo queria se aquecer.

Era sempre assim: alguém puxava assunto, e você, com o brilho nos olhos e as mãos gesticulando no ar, começava a contar as histórias dos seus dates desastrosos — e todos paravam pra ouvir.

Você ria das suas próprias falas, como quem não se leva tão a sério, e soltava um “acho que espanto os caras porque falo demais” como se isso fosse um defeito.

Mas, Vica…

Foi justamente aí que eu comecei a me apaixonar.

Pelo seu “falar demais”. Pela sua coragem de ser inteira. Pela forma como você ocupava espaço sem pedir desculpas, como se fosse dona da própria narrativa — e era.

Você falava como quem vive, e vivia como quem sente tudo de verdade.

Enquanto os outros se afastavam porque não sabiam lidar com tanto, eu me aproximei porque sempre tive medo do pouco.

Você era extrovertida.

Daquelas que não precisavam forçar presença — só chegar já era o suficiente pra mudar o clima do lugar.

Era dinâmica, elétrica, impossível de acompanhar com passos normais. Tinha o dom de puxar todos pro seu ritmo, como se o mundo inteiro tivesse que dançar conforme a sua música.

Engraçada sem esforço, afiada nas palavras, dona de um humor que vinha na medida certa entre o sarcasmo e o acolhimento.

Você era aquela pessoa que todo mundo esperava pra começar a festa.

Mas a verdade é que... você era a festa.

Você era o som mais alto da playlist, o estalo das rolhas, a gargalhada mais escandalosa da sala.

Era a alma do ambiente, a luz piscando no canto do olho, a lembrança boa no dia seguinte.

E eu?

Eu era só mais um convidado sortudo que, por um tempo, teve o privilégio de dançar com o próprio evento.

Lembro bem daquela noite.

Mesmo com todo o caos bonito que você carregava, com toda a luz que explodia do seu jeito de viver — ali, no meio daquela festa — eu percebi algo que talvez ninguém mais visse.

Algo que não dançava, que não gritava, que não chamava atenção… mas que me puxou feito correnteza.

Eu vi mais.

Vi que por trás do riso fácil, tinha uma profundidade silenciosa. Que seus olhos, embora brilhassem, guardavam histórias que não estavam sendo contadas naquela roda.

Eu soube, sem entender como, que você era muito mais do que mostrava.

E, de alguma forma estranha, urgente e inevitável… eu precisei te conhecer.

Não como os outros te conheciam.

Não pelas piadas, nem pelos casos engraçados.

Mas por dentro.

Eu queria saber o que te fazia chorar quando ninguém tava olhando. Quais músicas você escutava quando queria sumir. O que doía em você. O que te salvava.

E foi aí que começou tudo, sem que você soubesse — e sem que eu soubesse também.

Eu não bebia. Nunca foi meu costume. Mas naquela noite, eu peguei uma bebida — não pela sede, mas pela desculpa.

Você estava perto do bar, rindo com um copo na mão, e eu pensei que se fingisse uma intenção, talvez conseguisse me aproximar de você. Então fui. Devagar. Fingindo naturalidade, como se o coração não estivesse ensaiando um salto.

Você percebeu.

Se aproximou em silêncio. Me olhou. Sorriu daquele jeito que bagunça até pensamento organizado. E então, virou de costas e continuou uma conversa com alguém ao lado. Como se sua simples presença já fosse suficiente pra desestabilizar quem estivesse por perto — e era.

E foi aí que eu senti seu cheiro.

Doce, suave, com um toque de algo que eu não sei nomear até hoje, mas que combinava perfeitamente com o que você era: viva, leve, intensa sem pedir licença.

Naquele instante, sem aviso, sem discurso, sem clichê…

Eu me apaixonei.

Assim. Do nada. No meio de uma festa barulhenta, com uma bebida na mão que eu nem queria, e uma mulher de costas que, de alguma forma, virou meu mundo inteiro de cabeça pra baixo.

Sempre fui embora cedo dessas festas.

Não gostava da bagunça, do barulho, das conversas rasas que se afogavam no som alto.

Mas naquele dia… eu fiquei.

Fiquei porque você estava lá.

Eu assisti cada um dos seus passos como quem assiste um pôr do sol raro: sabendo que vai acabar, mas desejando que dure só mais um pouco.

Você cantou alto, dançou como se o mundo estivesse dentro do seu fone, riu até dobrar o corpo e bebeu com a liberdade de quem sabe viver.

Mas não cruzou o olhar comigo. Nem uma vez.

E, ainda assim, eu não conseguia sair dali.

As pessoas ao seu redor pareciam genuinamente felizes. Como se só de estar perto, você puxasse o riso de dentro delas.

Você era um tipo raro de presença — dessas que faz qualquer ambiente parecer lar, mesmo sendo só um canto cheio de desconhecidos.

E eu…

Eu só queria sentir o que elas sentiam.

Queria saber como era estar dentro da sua órbita, ao invés de girar ao redor feito um planeta tímido, escondido na sombra da sua luz.

Sua bebida havia acabado.

E eu te vi, por entre as luzes coloridas e a música alta, procurar um lugar pra sentar.

Você vestia um vestido amarelo— leve, quase etéreo — com um decote sutil e as costas nuas, como quem não precisa se esforçar pra ser o centro de tudo.

Ele era solto, como você.

Como seu riso, como sua alma.

Seus cabelos castanhos, longos, dançavam junto ao seu andar. E quando você se sentou, cruzou as pernas devagar e prendeu o cabelo num coque improvisado, eu juro que o tempo desacelerou.

Vi você suspirar.

E foi ali, naquele suspiro, que eu entendi uma das maiores verdades que já guardei:

até o verão precisa de uma pausa.

Porque mesmo sendo sol em forma de gente, você parecia cansada.

Não exausta — não de um jeito que preocupasse — mas daquele jeito de quem carregava o mundo no peito, e às vezes só queria colocá-lo no colo por alguns minutos.

Ainda assim, bastava alguém se aproximar... e você retribuía o calor.

Com um sorriso, um gesto, uma palavra qualquer.

Você não sabia negar luz.

Era feita de generosidade até no silêncio.

E eu, ali, de longe, percebi que me apaixonava mais ainda não pela festa que você era, mas pela mulher que se recolhia no intervalo da música.

Fiquei te olhando por longos minutos.

Como quem observa uma constelação tentando decorar cada estrela — e ainda assim se perde, fascinado.

Acho que você sentiu.

Porque, de repente, ergueu o olhar.

E me encontrou.

Foi rápido, mas inteiro.

Como se, naquele exato segundo, só existíssemos nós dois no mundo.

Você sorriu.

Daquele jeito leve, que escorrega nos cantos da boca e ilumina tudo ao redor.

Levantou a mão com um copo invisível e fez um brinde.

Brindou comigo. Sem dizer nada. Sem precisar.

E fingiu beber, teatral e divertida.

Eu, paralisado e completamente seu, bebi de verdade.

Como se aquele gole fosse meu ingresso pra entrar, ainda que por um instante, na sua órbita solar.

Você sorriu de novo.

E eu soube, ali, que nunca mais esqueceria aquela noite.

Nem aquele brinde silencioso.

Nem aquele sorriso que me deu o mundo e levou meu juízo embora.

Ludovica,

eu me apaixonei por você bem ali.

Naquele brinde silencioso.

Na troca de olhares que durou segundos, mas mudou tudo em mim.

Me apaixonei pelo verão que você é —

pela luz exagerada, pela intensidade que queima, mas aquece.

Pela forma como você ocupa o mundo sem pedir desculpas.

Me apaixonei pela sua tagarelice incansável,

pela forma como você fala como quem dança, como quem vive tudo de uma vez.

Me apaixonei pela sua risada — aquela que parecia explodir de dentro, sem filtros.

Pelo seu sorriso, que parecia me ver mesmo quando ninguém mais via.

Me apaixonei pelo furacão.

Porque era impossível não ser levado.

E talvez eu nem quisesse resistir.

Me apaixonei por você em meio à festa, ao caos, às luzes piscando.

Naquelas horas em que você era tudo, e eu era só um espectador tentando entender quando foi que meu mundo virou você.

Então...

respondendo, finalmente, à pergunta que você me fez no dia em que tudo ruiu —

aquela pergunta que me atravessou como faca quente,

aquela que você fez com os olhos molhados e os ombros caídos:

“Você chegou a me amar?”

Sim.

Sim, Ludovica. Eu me apaixonei.

De um jeito que nem eu, nem você, nem o mundo poderiam conter.

Me apaixonei no exato instante em que te vi, como um raio que rasga o céu limpo sem aviso, sem nuvem, sem lógica.

Quando a tua risada explodiu no salão e eu soube que não existia mais paz possível sem ouvir aquele som de novo.

Me apaixonei quando senti teu perfume —

doce, vibrante, morango com verão, como se tudo em você dissesse “fica”, mesmo sem falar nada.

Me apaixonei naquele brinde idiota, mudo, invisível,

que trocamos como dois desconhecidos cúmplices de algo que nem sabiam o que era ainda.

Mas eu soube.

No fundo do peito — no lugar onde mora tudo que é verdade e medo.

Soube que estava ferrado. Que você seria o meu ponto de virada.

E ainda assim, fui. Teimando. Típico meu.

Ludovica, eu me apaixonei.

Com tudo. Com a alma, com a carne, com o instinto.

E o pior — ou talvez o mais bonito — é que nunca deixei de estar apaixonado desde aquele dia.

Me perdoa.

Por não ter dito tudo isso antes.

Por não ter tido a mesma coragem que tive naquele dia, quando me aproximei com um copo na mão e o coração na boca.

Me perdoa por não ter sido sincero.

Por ter fugido justo quando o sentimento apertou.

Por ter calado quando você merecia ouvir.

Por ter te deixado tentando decifrar um silêncio que só existia por medo.

Eu fui covarde, sim.

Mas essa carta… é minha tentativa de redenção.

Não pra que você volte, nem pra que me perdoe agora.

Mas pra que, um dia, quando pensar em nós, você saiba que eu amei.

Mesmo que errado, mesmo que tarde, mesmo que calado.

Com tudo que fui capaz de sentir.

Com tudo que não consegui dizer.

— Augusto Castillo