Hoje, por um capricho da memória, quis escrever-lhe.
Não uma vez, nem duas tantas, que perdi o número.
Mas a razão, essa velha conselheira cansada,
pôs-se entre mim e o impulso,
e nada foi dito.
Pensei nele ao perceber que não almoçara.
Era ele quem me lembrava dessas miudezas
de comer, de existir.
Mais tarde, quando o trabalho me pareceu inútil,
senti o mesmo ímpeto:
ouvir de novo aquele “vai passar”
que, vindo dele, fazia o mundo parecer menos pesado.
Ao cair da tarde, quase cedi.
O sol escondia-se por trás dos prédios,
e eu quase disse o que me doía:
que menti,
que sentir falta é uma forma discreta de morrer,
que aceitaria migalhas,
desde que viessem de sua mão.
Mas calei-me.
Há dignidades que nascem do silêncio
ou da covardia, não sei bem.
Abri nossa conversa um sem-número de vezes.
Li as palavras antigas como quem consulta um oráculo
que já não responde.
A blusa dele repousa sobre a cadeira,
testemunha muda de uma ausência que se prolonga.
Não a devolvi.
Talvez por esperança, talvez por desatino.
Disse-lhe, na última vez,
que, se um dia sentisse saudade,
eu estaria aqui.
E cumpro minha palavra
ainda que ninguém venha cobrar.
Creio que, às vezes, ele se recorde.
Talvez ao vestir o escapulário,
ou ao ouvir uma risada parecida com a minha.
Mas logo a vida o chama,
e ele segue.
E eu fico.
Com o silêncio que pesa como um corpo,
com o perfume que insiste em não partir,
com o toque que não chega.
Tudo o mais é eco.
Eco do que fomos,
perdido no vasto nada
onde moram as coisas que não voltam.