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O eco do que fomos - Ella Belizzato

Hoje, por um capricho da memória, quis escrever-lhe.

Não uma vez, nem duas  tantas, que perdi o número.

Mas a razão, essa velha conselheira cansada,

pôs-se entre mim e o impulso,

e nada foi dito.


Pensei nele ao perceber que não almoçara.

Era ele quem me lembrava dessas miudezas 

de comer, de existir.

Mais tarde, quando o trabalho me pareceu inútil,

senti o mesmo ímpeto:

ouvir de novo aquele “vai passar”

que, vindo dele, fazia o mundo parecer menos pesado.


Ao cair da tarde, quase cedi.

O sol escondia-se por trás dos prédios,

e eu quase disse o que me doía:

que menti,

que sentir falta é uma forma discreta de morrer,

que aceitaria migalhas,

desde que viessem de sua mão.


Mas calei-me.

Há dignidades que nascem do silêncio 

ou da covardia, não sei bem.


Abri nossa conversa um sem-número de vezes.

Li as palavras antigas como quem consulta um oráculo

que já não responde.

A blusa dele repousa sobre a cadeira,

testemunha muda de uma ausência que se prolonga.

Não a devolvi.

Talvez por esperança, talvez por desatino.


Disse-lhe, na última vez,

que, se um dia sentisse saudade,

eu estaria aqui.

E cumpro minha palavra 

ainda que ninguém venha cobrar.


Creio que, às vezes, ele se recorde.

Talvez ao vestir o escapulário,

ou ao ouvir uma risada parecida com a minha.

Mas logo a vida o chama,

e ele segue.


E eu fico.

Com o silêncio que pesa como um corpo,

com o perfume que insiste em não partir,

com o toque que não chega.


Tudo o mais é eco.

Eco do que fomos,

perdido no vasto nada

onde moram as coisas que não voltam.